Os protestos antifascistas e as massivas manifestações
contra o racismo nos Estados Unidos, incendiaram os debates na esquerda brasileira
sobre a realização de manifestações em um quadro de pandemia causada por um
vírus com elevados índices de contágio. Os argumentos favoráveis e contrários
são inúmeros, vamos a alguns deles.
Diante do obscurantismo Bolsonarista que não enfrenta
a pandemia e incentiva o fim do isolamento social, única medida efetiva para o
controle do contágio, se posicionar favorável a manutenção do isolamento social
passou a ser um signo de distinção em relação aos bolsominions. Assim, muitos
tem destacado haver uma contradição entre defender o isolamento social como
forma de salvar vidas e convocar atos público que gerem aglomeração. E mais,
apontam que a ida às ruas poderia enfraquecer o clamor para que as pessoas
fiquem em casa, pois geraria o argumento de que se podem participar de
atividades políticas, não haveria razão para não poderem retornar para as suas
atividades laborais, isso em um contexto de amplas iniciativas de aberturas
prematuras capitaneada por governos locais.
Tais argumentos são rebatidos pelos que defendem a
convocação dos atos. Para esses é exatamente para preservar a vida que devemos
tomar as ruas, pois enquanto este governo subsistir não será possível enfrentar
a crise sanitária, social, econômica e política que ora nos encontramos.
Trata-se ainda do momento de se somar ao movimento “Vidas Negras Importam” que,
impulsionado pelas manifestações iniciadas em função do brutal assassinato de
George Floyd, podem conseguir expor a sociedade racista e escravocrata em que
vivemos, dado que mesmo com toda a luta do movimento negro vidas seguem sendo
ceifadas e ignoradas. É por Miguel, João Pedro e tantos outros meninos que
nunca chegarão a vida adulta.
Há contudo quem rebata, dizendo que são os mais
vulneráveis que terão suas vidas colocadas em risco, os mesmo negros, pobres,
periféricos que sem acesso a planos de saúde e muitas vezes condições mínimas sanitárias,
é que seguirão perdendo suas vidas em função do Covid-19 ou da sobrecarga do
sistema de saúde.
É preocupante ver como muitas discussões ter se convertido
em ataques ao posicionamento divergente neste assunto, como se aquele que é
contrário a convocação, participação, pois aí também há gradações, nos atos,
estivesse colocando seu bem estar acima da luta, e os favoráveis fossem
irresponsáveis que não compreendem a gravidade da situação e as consequências
de suas ações. Nenhuma dessas acusações é legítima, tal como visto os
argumentos de ambos os lados são consistentes, vivemos uma situação única e
extremamente desafiadora, não há respostas prontas.
Há meses um vírus zomba da arrogância humana e seria
um bom momento para entendermos que não sabemos tudo. De minha parte consinto
que posso estar errada, e como o objetivo não é provar minha infalibilidade,
inexistente por sinal, e sim contribuir com um debate fundamental, defendo que evitemos
conclusões definitivas e açodadas. Acredito que precisamos defender a
legitimidade dos atos frente aos ataques da direita, registrar sua importância
e apoiar suas pautas mais do que essenciais. Porém também defendo que as
organizações políticas não devem convocar atos de rua nesse momento, me explico.
Segundo projeção do Instituto de Métrica da Universidade
de Washington, em agosto o Brasil pode chegar a 165 mil mortes. Vale destacar
que em meados de maio a expectativa do mesmo instituto era de que no início de
junho o Brasil alcançasse as 1,5 mil mortes por dia, nesta semana registramos o
nefasto recorde de mais de 1,4 mil mortes em 24 horas. Mesma semana em que o
Governo Federal tomou medidas que visam ocultar os números que sabemos
subnotificados.
Está em curso uma ação eugenista. Ainda que saibamos
que a incompetência é uma das marcas desse governo, a forma como o mesmo lida
com a pandemia tem mais de cálculo do que de erro, vide a fala da assessora de
Paulo Guedes que celebrou a morte de idosos como meio para melhorar o
desempenho econômico.
Estamos diante de um genocídio de uma parte específica
da população, com CEP, cor e classe social também específicos a quem, a bem da
verdade, o Estado nunca parou de matar, mas agora o faz em progressão
geométrica e com a justificativa perfeita de que se trata de uma fatalidade,
quando na verdade sabemos que tais mortes poderiam ser evitadas.
Portanto, ir às ruas contra que perpetra o horror é legítimo,
mas não me parece ser o momento para que a organizações políticas se somem aos
atos. Defendo essa posição não porque tal ação poderia colocam em risco a vidas
daqueles que decidiram participar, mas porque coloca em risco a vida de todos,
particularmente daqueles e daquelas que Bolsonaro e sua trupe pretendem
eliminar por não servirem mais à valorização do valor, seja por serem
considerados improdutivos ou porque os meios de produção se desenvolveram de
tal forma que o mesmo exército de reserva passou a ter um limite para seguir
sendo útil aos interesses do capital. Como disse Fernando Pessoa ao
ressignificar o velho dito dos navegadores, viver não é preciso,
particularmente em tempos como esses, por isso nos cabe ouvir o outro e
refletir para talvez conseguirmos chegar a uma síntese a altura dos desafios
que estão colocados.
Tássia Rabelo, cientista social, Dirigenta nacional da Avante e professora da Universidade Federal da Paraíba.
Tássia Rabelo, cientista social, Dirigenta nacional da Avante e professora da Universidade Federal da Paraíba.